Inconstitucionalidades e ilegalidades que incorrerá a ANEEL na revisão da RN nº 409/2010

Necessidade de análise jurídica e de impacto regulatório para redefinição dos critérios e procedimentos para participação de empreendimentos não despachados centralizadamente no MRE.

CANAL ENERGIA

YURI SCHMITKE, ADVOGADO

A Audiência Pública nº 24/2017 foi instaurada com o objetivo de revisar a Resolução Normativa nº 409/2010, que define os critérios e procedimentos para participação de empreendimentos não despachados centralizadamente no Mecanismo de Realocação de Energia – MRE, de modo a atender ao disposto no art. 24 da Lei nº 13.360/2016, que dispõe que “os empreendimentos hidroelétricos não despachados centralizadamente que optarem por participar do MRE somente poderão ser excluídos do referido mecanismo por solicitação própria ou em caso de perda de outorga.”

A Audiência Pública foi precedida de análise por parte da Nota Técnica nº 041/2017-SRG/ANEEL, de 19/04/2017, que apresentou, em suma, duas alternativas, quais sejam:

(i) criação de 2 clusters no MRE: #1 com as usinas despachadas centralizadamente e não centralizadamente que atendam a limites mínimos de geração média; e #2 formado por usinas hidrelétricas não despachadas centralizadamente que não atendam a limites mínimos de geração média; e

(ii) Adoção de Mecanismo de Redução de Energia Assegurada – MRA para usinas não despachadas centralizadamente, pela geração média, caso a usina não atenda a limites mínimos de desempenho.

Em apertada síntese, tais alternativas são justificadas pela eficiência regulatória, sob a premissa de que eventuais prejuízos de geração deficitária das usinas não despachadas centralizadamente – que agora são impedidas de serem excluídas do MRE – não poderiam ser repassados para as demais usinas participantes do MRE.

Para contextualizar a análise jurídico-regulatória que será abordada, importa tecer considerações preliminares acerca do Excesso do Poder Regulamentar e Regulatório.

O Poder Regulamentar é de exclusividade do chefe do Poder Executivo (art. 84, IV da Constituição Federal de 1988 – CF/88), segundo o qual compete privativamente ao Presidente da República sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução.

Segundo Maria Silva Di Pietro, o decreto “não pode inovar na ordem jurídica, criando direito, obrigações, proibições, medidas punitivas, até porque ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, conforme o artigo 5°, II, da Constituição; ele tem que se limitar a estabelecer normas sobre a forma como a lei vai ser cumprida pela Administração” [2006].

Assim, caso o Poder Executivo decrete normas que inovem no ordenamento jurídico, trazendo imposição de direitos e obrigações, sem amparo prévio em lei ordinária, o mesmo caracteriza-se como decreto autônomo e padece de inconstitucionalidade por usurpação de competência.

Os standards devem sempre ser fixados por lei, através de aprovação do Congresso Nacional – Poder Legislativo – e regulamentados pelo Poder Executivo, conforme arts. 65 e 84, inciso IV, da CF/88.

Portanto, não há dúvidas que cabe à Agência Reguladora somente a regulação técnica, dentro dos limites estabelecidos na lei e no regulamento, sendo vedado a criação, modificação ou extinção de direitos ou obrigações, pois qualquer norma que não esteja dentro dos parâmetros legais e regulamentares, ou seja, que tenha disciplinado acerca de direitos ou obrigações, incorrerá em flagrante inconstitucionalidade por usurpação de competência legislativa ou executiva, conforme o caso.

A partir dessas premissas, pode-se dizer que a Agência Reguladora incorrerá em Excesso do Poder Regulatório caso exceda as competências que lhe foram conferidas por Lei – geralmente previstas em sua lei de criação e instituição.

Volvidas tais considerações, destaca-se que o art. 26, da Lei nº 9.427/96, instituiu apenas um Mecanismo de Realocação de Energia – MRE (uno), sem qualquer distinção se seria despachado ou não centralizadamente pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS, cujas metodologias previstas na referida Nota Técnica (cluster ou MRA) violam o princípio da igualdade (art. 5º, da CF/88 e art. 2º da Lei nº 9.784/99).

As referidas metodologias propostas pela SRG/ANEEL também padecem de vício de inconstitucionalidade, por incorrerem em Excesso do Poder Regulatório (arts. 65 e 84, inciso IV, da CF/88), porquanto tais pretensões estabelecem distinção sem base legal ou regulamentar, no que se refere à (i) criação de cluster (outro MRE) ou (ii) redução dos recebíveis através do Mecanismo de Redução de Energia Assegurada – MRA, em ambos os casos através de aferição unilateral por geração média caso a usina não atenda a limites mínimos de desempenho em face de suas respectivas Garantias Físicas – definidas a priori pelo Ministério de Minas e Energia – MME.

A apuração por geração média, como mecanismo para impedir que usinas deficitárias causem prejuízos ao MRE, viola o conceito de Energia Assegurada (Garantia Física) regulamentada no art. 21 do Decreto nº 2.655/98, assim como o direito adquirido (segurança jurídica, art. 5º, inciso XXXVI, CF/88) aos respectivos montantes contratualmente comercializados (art. 2º, §§ 1 e 2º do Decreto nº 5.163/2004).

O procedimento automático de apuração de energia média, sem considerar as especificidades em cada caso concreto quanto ao risco não hidrológico, viola o princípio do due process of law, pois a ANEEL tem o dever de fiscalizar e apurar as indisponibilidades não hidrológicas, conforme art. 2º, da Lei nº 9.427/97, que são as únicas que podem ser imputáveis ao agente de geração, já que as indisponibilidades hidrológicas são naturalmente compartilhadas pelas usinas integrantes do MRE.

Neste ínterim, importa ressaltar que a referida metodologia da geração média, estabelecida na Portaria MME nº 463/2009 e na Resolução Normativa ANEEL nº 409/2010, foi questionada por diversas decisões judiciais em razão de ilegalidades, objetivando impedir a exclusão do MRE mediante realização de procedimento automático de revisão extraordinária da Garantia Física pelo MME (art. 6º, incisos I e II da Portaria MME 463/2009).

Feitas tais considerações, passa-se a expor algumas questões acerca da Análise de Impacto Regulatório – AIR, que é um dos pilares da governança regulatória, tendo por finalidade auxiliar na tomada de decisão e contribuir para uma regulação eficiente, eficaz, transparente e responsável. Esse assunto já foi inclusive objeto de artigo de minha autoria.

A AIR tem se mostrado a ferramenta mais eficaz para melhorar a qualidade regulatória e equacionar o estoque das normas regulatórias (necessidade vs utilidade), mediante análise ex ante e ex post.

A AIR é um dos instrumentos disponíveis para melhorar a qualidade da regulação e consiste na análise e avaliação dos possíveis benefícios, custos e impactos de regulações novas ou já existentes (OECD, 2008), através de método capaz de ajudar no desenho, na implementação e no monitoramento de melhorias dos sistemas regulatórios, oferecendo uma metodologia de avaliação das consequências regulatórias (KIRKPATRIC e PARKER, 2004).

Para fins de garantir a tão almejada segurança e estabilidade regulatória, a AIR tem por escopo propiciar previsibilidade, redução de riscos e ganhos em eficiência e qualidade na regulação, mediante participação dos stakeholders e mecanismos de accountability, ou seja, através da participação dos agentes interessados (consulta pública), transparência e prestação de contas (responsabilização do regulador).

Disso resulta maior legitimação do regulador na tomada de decisão, com base em evidências empíricas, afastando-se decisões discricionárias e imotivadas, bem como a intervenção indevida e prejudicial do regulador na atividade econômica dos agentes regulados.

Caso a AIR seja utilizada após a elaboração da minuta da norma regulatória, sem a participação prévia dos agentes afetados e efetiva quantificação dos custos e benefícios (cost-benefit), sem análise empírica dos dados coletados, o instrumento irá prestar-se apenas a justificar decisões já tomadas (ex-post), salvo pequenos ajustes, resultando em cumprimento de mera obrigação.

Em suma, são elementos essenciais de uma AIR: (i) a descrição com mapeamento das normas vigentes, definição do problema e objetivos políticos, e demonstração da necessidade de nova regulação; (ii) as opções/alternativas que podem ser adotadas, inclusive não regulatórias; (iii) os custos diretos e indiretos para quantificar os impactos da regulação (econômicos, financeiros, sociais e ambientais); (iv) a consulta pública para coleta de informações com participação dos interessados (stakeholders); (v) a fase de cumprimento e execução com descrição da política de conformidade com as normas e instrumentos garantidores de cumprimento; e (vi) o acompanhamento regulatório com mecanismos de coleta de informação e definição da validade da norma regulatória (manutenção, modificação ou extinção).

O procedimento adotado pela BRDO (UK) prevê diversas etapas a serem seguidas, na seguinte ordem: (i) definição do problema e dos objetivos a serem alcançados; (ii) consulta com participação dos agentes para validar as conclusões alcançadas nas fases anteriores; (iii) seleção das diferentes opções a serem consideradas; (iv) escolha do método de análise; (v) mapeamento de dados para mensurar custos e benefícios de todas as opções identificadas; (vi) análise e comparação das opções, segundo o método definido, e elaboração do relatório de AIR e da norma regulatória; (vii) consulta pública das minutas do relatório de AIR e da norma regulatória para validação do resultado com os interessados; (viii) ajuste do relatório de AIR e sugestão da medida regulatória a ser adotada pelo agente regulador responsável pela tomada de decisão; (ix) monitoramento da regulação, mediante levantamento de informações para os stakeholders e o regulador.

No caso específico do setor elétrico brasileiro, a ANEEL passou a utilizar AIR a partir de 2013, com a edição da Resolução Normativa nº 540. Contudo, o procedimento tem se resumido apenas ao preenchimento do formulário, sem acompanhamento de relatório técnico detalhado de AIR e análise efetiva de custo-benefício, e, na grande maioria das vezes, sem consulta pública prévia à elaboração da norma regulatória, o que prejudica substantivamente a efetividade do instrumento e a legitimação do regulador.

Caso a AIR seja utilizada após a elaboração da minuta da norma regulatória, sem a participação prévia dos agentes afetados e efetiva quantificação dos custos e benefícios, ou seja, sem análise empírica dos dados coletados, o instrumento irá prestar-se apenas a justificar decisões já tomadas (ex-post), salvo pequenos ajustes, resultando em cumprimento de mera obrigação.

Dito isso, é de se concluir que AP nº 24/2017 não efetuou AIR da forma como deveria, cujo formulário preenchido cinge-se a mero resumo de análise unilateral extraída da referida Nota Técnica da SRG, sem que houvesse (i) Parecer Jurídico da Procuradoria-Geral, (ii) análise de custo-benefício e (iii) consulta pública aos stakeholders previamente à elaboração da minuta da Resolução que ora se pretende aprovar publicamente.

Portanto, é de se concluir que as metodologias propostas pela Nota Técnica nº 041/2017-SRG/ANEEL encontram-se eivadas de inconstitucionalidades e ilegalidades, cujos termos merecem especial atenção da Diretoria da ANEEL ao finalizar a referida Audiência Pública, com vistas a afastar eventual judicialização do tema.

Recomenda-se, portanto, que seja instituída, para as usinas não despachadas centralizadamente, metodologia de apuração das indisponibilidades não hidrológicas que não incorra na geração média (automática) utilizada na Portaria nº 463/2009 e na Resolução Normativa nº 409/2010, conferindo a essa classe de empreendimento tratamento igualitário em relação aos demais integrantes do MRE, através de ação fiscalizatória da ANEEL para garantir o exercício dos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório a todas as usinas hidrelétricas não despachadas centralizadamente que por ventura não atendam a limites mínimos de geração em face de suas respectivas Garantias Físicas.

Yuri Schmitke Almeida Belchior Tisi é advogado e sócio da Girardi & Advogados Associados, bacharel em Direito e pós-graduado em Direito de Energia Elétrica pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB, vice-presidente da Comissão Nacional de Direito Regulatório de Energia Elétrica da Associação Brasileira de Advogados – ABA e membro da comissão especial de energia do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.