Por:* Charles Lenzi
As hidrelétricas desempenham um papel histórico e essencial na matriz elétrica do Brasil, representando atualmente cerca de 60% da eletricidade gerada no país. Contudo, a importância das usinas vai muito além da simples geração de energia elétrica.
Elas são fundamentais para a gestão da vazão dos rios e no controle de enchentes, abastecimento público, irrigação, transporte, pesca, recreação e manutenção de ecossistemas naturais e áreas de preservação. Dada a relevância estratégica dessas múltiplas funções, é imprescindível que o Brasil retome com urgência os investimentos na manutenção e expansão de suas usinas hidrelétricas, principalmente em face dos desafios impostos pelas mudanças climáticas e dos compromissos assumidos pelo país no Acordo de Paris, visando atender as metas de redução de emissões.
As mudanças climáticas, com alterações no regime de chuvas, aumento das temperaturas e variações sazonais na disponibilidade de água, impactam diretamente a capacidade de reservação e geração das usinas hidrelétricas. Um estudo recente realizado nos Estados Unidos, publicado na Environmental Research Letters1, em 8 de agosto ,destacou que, apesar das incertezas climáticas, a geração hidrelétrica deve aumentar em várias regiões americanas nas próximas décadas. Essa previsão se baseia no aumento da precipitação, embora algumas áreas específicas possam enfrentar desafios, como a redução da geração durante períodos mais secos.
No contexto brasileiro, os efeitos das mudanças climáticas já são sentidos em diversas regiões. Os ciclos de escassez hídrica vividos nos últimos anos alertaram para a necessidade de um planejamento e gestão integrada dos recursos hídricos mais eficazes e antecipados. O Brasil, sendo um dos países com a maior hidrografia e, por conseguinte, maior potencial hidrelétrico do mundo, abrigando 12% da água doce disponível do planeta, precisa não apenas se preparar para enfrentar os impactos das mudanças climáticas, mas também reconhecer o papel vital que as usinas hidrelétricas desempenham na segurança hídrica e energética de sua matriz.
As usinas hidrelétricas são fontes de energia limpa e renovável, além de desempenharem funções críticas no controle de enchentes, retendo e amortecendo o excesso de água durante os períodos de chuvas intensas e liberando-a de forma controlada, enquanto geram energia elétrica para o sistema. Essa capacidade é essencial para proteger áreas urbanas e agrícolas de inundações e otimizar o uso desse recurso. Outro ponto de extrema relevância é a irrigação para a agricultura, um dos pilares da economia brasileira, que também depende do armazenamento e gestão da água das hidrelétricas.
Com as mudanças climáticas afetando cada vez mais a sazonalidade das chuvas, a capacidade dos reservatórios das usinas hidrelétricas de controlar enchentes, fornecer abastecimento público e garantir irrigação torna-se ainda mais importante. À medida que os padrões de precipitação se tornam mais difíceis de prever, o papel desses reservatórios, mesmo nas usinas de menor porte será crucial para garantir a resiliência dos ecossistemas e o desenvolvimento das atividades econômicas que dependem direta ou inditamente da água.
Além das funções mencionadas, as hidrelétricas possuem uma vantagem significativa sobre outras fontes de energia renovável: sua capacidade de reservar e fornecer eletricidade de forma confiável e estável quando o sistema elétrico requer. Ao contrário de fontes intermitentes como a solar e a eólica, as hidrelétricas podem ser despachadas conforme a necessidade, proporcionando flexibilidade ao sistema elétrico. São, em essência, baterias naturais. Em um cenário de mudanças climáticas, essa confiabilidade é um fator chave para garantir que o Brasil possa atender à demanda por eletricidade de forma sustentável e contínua, além de expandir sua matriz elétrica de forma racional e segura.
Para tal, a flexibilidade operacional das usinas hidrelétricas é essencial para integrar outras fontes de energia renovável ao sistema. O aumento da participação de energia solar e eólica na matriz brasileira é fundamental para a transição energética e a descarbonização, mas essas fontes intermitentes precisam de uma fonte de geração associada que amorteça os efeitos de sua intermitência, conferindo maior confiabilidade ao fornecimento de energia. Esse papel pode ser desempenhado com eficácia pelas hidrelétricas, que podem ajustar sua geração conforme necessário para complementar a variabilidade das energias solar e eólica, assegurando assim um fornecimento contínuo e estável de energia.
Diante desse cenário, é imperativo e premente que o Brasil invista na modernização de suas usinas hidrelétricas existentes e na construção de novas centrais, inclusive retomando projetos de usinas com reservatório de regularização plurianual. A expansão do parque hidrelétrico deve ser vista como uma estratégia não apenas para garantir modicidade tarifária (as hidrelétricas são as fontes de geração de energia mais baratas em termos de impacto na tarifa dos consumidores) e a segurança energética, mas também como uma medida de adaptação às mudanças climáticas. O país possui um potencial significativo ainda inexplorado, em praticamente todas as regiões do país. Isso otimiza o uso dos recursos, postergando ou mitigando a necessidade de investimentos em linhas de transmissão, contribuindo para uma maior eficiência do sistema elétrico e a modicidade tarifária, além de aumentar a segurança energética.
Os avanços tecnológicos também podem contribuir para aumentar a eficiência das usinas hidrelétricas existentes. A modernização de turbinas e a implementação de sistemas de gestão mais eficientes podem ampliar a capacidade de geração aos parques já instalados. Essa abordagem é especialmente relevante em um contexto de pressões ambientais e sociais para minimizar impactos de novas grandes barragens. Investir em tecnologia e inovação permite que o Brasil maximize o uso das infraestruturas hidrelétricas existentes, atendendo às demandas energéticas de forma sustentável e responsável.
Importante destacar que as hidrelétricas são a única fonte de energia em larga escala no Brasil com vida útil superior a 100 anos com o mesmo investimento inicial, além de serem um bem da União. Isto só é possível, pois dentro do conjunto instalado as barragens conferem uma confiabilidade e durabilidade estrutural que permite que apenas máquinas e equipamentos sejam conservados ou modernizados ao longo do tempo. Desta forma, com investimentos relativamente baixos durante a operação, é possível manter uma hidrelétrica operando por décadas. Essa longevidade e eficiência não é possível com outras fontes renováveis. As hidrelétricas representam, portanto, um verdadeiro legado para as próximas gerações, além de serem também muito importantes para promover desenvolvimento regional, gerando mais empregos e impactando de forma positiva os indicadores socioeconômicos, em vista de sua cadeia produtiva ser 100% nacional.
Em um mundo cada vez mais impactado pelas mudanças climáticas, para prosperar de forma sustentável, o Brasil precisa revisitar e aprender com o passado, reconhecendo e valorizando novamente o papel estratégico das usinas hidrelétricas. Elas são essenciais não apenas para a geração e suprimento de energia de qualidade, mas também para a modicidade tarifária, a resiliência hídrica, o abastecimento público, a segurança alimentar e a preservação ambiental. Portanto, é imprescindível que o país adote urgentemente uma política de modernização e expansão do setor hidrelétrico, garantindo que essa fonte renovável continue a desempenhar seu papel vital e seja protagonista no desenvolvimento sustentável e na transição para uma economia de baixo carbono.
Com um planejamento adequado e investimentos contínuos, as hidrelétricas brasileiras podem não apenas mitigar os impactos das mudanças climáticas, mas também se consolidar como um pilar essencial da segurança energética nacional. Essas usinas têm o potencial de fornecer uma fonte confiável de energia, adaptando-se às novas realidades climáticas e contribuindo para a sustentabilidade da matriz energética do país.
O futuro da energia no Brasil passa, necessariamente, pela manutenção, modernização e expansão de seu parque hidrelétrico, assegurando que o país permaneça como um líder global em energia renovável. Investir nesse setor não só reforça a segurança energética, mas também promove a sustentabilidade e a resiliência diante das mudanças climáticas, permitindo que o Brasil continue a aproveitar seu vasto potencial hídrico de forma eficiente e responsável.
http://[1] https://iopscience.iop.org/
*Charles Lenzi é presidente-executivo da Abragel